Campo Grande (MS) – Dois atores em cena representando situações de caos social, até que ponto as coisas podem chegar. Foi o que propôs a Cia. Teatro Dois, de Campo Grande, com a peça “Subcutâneo”, que buscou uma reflexão sobre um universo de distopia, o quão caótico e angustiante pode se tornar uma sociedade, em que as diferenças são reprimidas.
A peça foi uma das atrações da Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo 2016. Com o teatro lotado, os atores Leandro e Phillipe Faria explicam, em debate após a representação do espetáculo, que a direção foi um trabalho conjunto, o texto é de Leandro e a trilha sonora de Phillipe. “A gente queria fazer com que as pessoas refletissem onde a gente pode chegar. Infelizmente isto está ficando próximo da realidade. A gente foi aumentando até chegar nesses 50 minutos para mostrar uma trajetória com esses personagens. A ideia do texto surgiu de um movimento que nasceu em janeiro do ano passado, chamado Gladiadores de Deus, aí eu pensei: ‘cara, a coisa tá ficando feia, precisamos fazer alguma coisa’. Mas ainda dá tempo de tomar outro caminho’, explica Leandro, que é formado em Artes Cênicas pela USP e Escola de Arte Dramática.
Phillipe Faria é de Minas Gerais, formou-se no Rio de Janeiro na Escola de Teatro Martins Pena. Estudou teatro musical em Londres e depois veio para Campo Grande. Desde então tem feito trilha sonora para o teatro. “Tive a ideia de ter essa rádio comunitária do governo. A gente solta o play e vai embora. A gente está super imbuído na história desse espetáculo. Tiramos os recursos do nosso bolso, pegamos objetos de nossas casas para montar o cenário. A gente tentou fazer o mais simples possível, primando pela praticidade. Não montamos a peça para o palco italiano, fizemos para espaços alternativos. A ideia é de se adequar a diversos espaços”.
A crítica de teatro Daniele Small, que vem acompanhando todas as atividades da Boca de Cena, disse ter achado incrível a peça e ter tido uma ótima experiência. “ É muito importante assistir a espetáculos. Ver o que vocês estão falando e da forma como vocês estão falando. A comédia geralmente é tida como uma forma fútil de fazer teatro, vocês mostraram que não é bem assim. Vocês têm uma coisa importante a dizer”.
Daniele notou que eles introduziram umas referências do romance distópico “1984”, de George Orwell. “Tem esse olhar que vigia, a câmera vigia as pessoas. É curioso porque a gente tem essa coisa que é o Big Brother. Esta peça, quanto mais cômica, mais pesada é. Coloca a comédia num lugar desbanalizador”.
A crítica pergunta ao grupo quais são suas referências eem teatrl e também para esta peça e Leandro faria responde: “Essa é a referência principal [1984]. Teve toda uma pesquisa sobre a distopia. Tem uma argumentação de que o universo distópico é onde nada é legal, tudo é distorcido, é ruim. Eu queria muito combater a distopia separada da realidade. Tem também o Plínio Marcos, a crueza como ele coloca os personagens. E a vida. Sou enlouquecido por Nelson Rodrigues, tudo isso a gente junta na hora de compor”.
Phillipe completa dizendo que outras referências do grupo são o teatro do absurdo, Ionesco, Becket. Sobre o enredo da peça, Leandro afirma que as pessoas estão nesse momento em que tudo o que elas concordam é seu inimigo. “Tem um momento na peça, no final, em que a gente se abraça e a gente também se beijava, só que com o crescimento do espetáculo, os personagens foram se humanizando, ficaram muito amigos, e foi dessexualizado isso”.
Os atores perguntam a Daniele se o começo longo com a trilha sonora incomoda e sobre o trabalho com menos marcações. “Eu acho a sujeira condizente com a linguagem”, ela diz. “Não tem necessidade de ter marca. Tem essa soltura, esse tempo, tem a ver com a linguagem do espetáculo. A trilha tem uma dobra sobre a expectativa que vocês criaram. Vocês são muito seguros do que fazem. O trabalho tem uma dimensão muito forte. Acredito que as referências não precisam ser uma coisa que a gente copia. Às vezes a melhor forma de ser legal às referências é transformar”.
A secretária adjunta de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação, Andréa Freire, estava presente na plateia e disse estar surpresa com o espetáculo. “As referências que ouvi sobre a peça é que tinha muita sujeira. Mas eu vejo como esse espetáculo é limpo. Vocês estão muito dentro do que estão fazendo. O cenário, o fato de pegarem objetos do local do espetáculo, no dia da encenação, isso tem tudo a ver com a proposta. Aquela cortina quando ela abre daquele jeito já me puxa”.
Sobre o fato de os atores/diretores terem composto o espetáculo juntos, Daniele disse que eles têm essa experiência de fazer teatro com maturidade. “Tem uma consisão de ideia, uma dramaturgia no sentido amplo. Tem esse lugar da autoria neles que é uma consciência da forma onde eles querem chegar. Tem o talento, a gente tem que levar isso em consideração. E o trabalho. A dramaturgia é muito próxima da encenação, nesse caso. Há um censo crítico. Tem um olhar de fora em vocês. Isso é uma coisa que se aprende”.
Leandro diz que há uma entrega, “uma coisa de ajudar mesmo. Eu pego muito dele [do Phillipe] da comédia. Não tem competição entre nós. Nisso a maturidade ajuda muito”.
Uma pessoa da plateia perguntou se alguém pode se incomodar sobre a questão religiosa na peça. Daniele responde que tem que incomodar, mesmo, tocar nas feridas. “O teatro acrítico me incomoda. O problema é usar a religião como forma de poder. Isso está acontecendo nessa rádio. Temos que deixar a religião para o foro íntimo, longe das situações de poder”.
O mediador do debate, Jair Damasceno, do Colegiado Setorial de Teatro, pede a Daniele que fale sobre a MIT Mostra Internacional de Teatro. “Na verdade, a minha geração de críticos deve muito aos festivais”, ela diz. “Tanto internacionais quanto das cidades. A gente tem circulado muito pelos festivais e é devedor do MIT. Foram três edições, tem um grupo de críticos que participam. A curadoria é de Antonio Araújo, professor da USP, que tem uma preocupação de trazer espetáculos não só do centro europeu, mas de outros países. As atividades formativas são intensas. O MIT transformou-se numa referência em formação. É muito sofisticado o nível de diálogo. A gente tem que fazer um esforço de ir atrás das coisas. Vale a pena tirar uns dez dias em março e participar”.
A crítica de teatro encerra sua fala enfatizando a importância da Boca de Cena. “Isso que está acontecendo aqui é muito importante. Esse lugar de convivência, esse debate depois das peças. Nas outras áreas não é assim. Os festivais são importantes para as cidades porque dão visibilidade. Amizade de festival é pra sempre”.
A Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo 2016 continua com suas atividades nesta sexta-feira. Os atores Leandro e Phillipe Faria, da Cia. Teatro Dois, de Campo Grande, ministram, das 13 às 15 horas, na Sala Conceição Ferreira do Centro Cultural José Octávio Guizzo, o Diálogo Cênico com o tema “A Construção da Narrativa no Teatro: Dramaturgia e Trilha Sonora”. E à noite, às 20 horas, no teatro Aracy Balabanian, o grupo Aplausos Cia. Teatral, de Campo Grande (MS), encena o espetáculo “Cadê?!”. A entrada é franca.
Fotos: Helton Pérez – Vaca Azul