Campo Grande (MS) – A Cia. do Mato apresentou na noite desta quarta-feira (20), durante a Semana Pra Dança 2015, no teatro Aracy Balabanian do Centro Cultural José Octávio Guizzo, o espetáculo “Mudança”, baseado na poesia de mesmo nome de Clarice Lispector. O trabalho foi contemplado com o Prêmio Célio Adolfo de Incentivo à Dança na categoria artista consolidado/montagem 2014.
A noite começou do lado de fora do teatro, na entrada, onde as pessoas formavam fila para assistir ao espetáculo. Foi montada uma infraestrutura em que foi exibido o vídeo Valtari, de Christian Larson, da Suécia. A exibição de trabalhos de videodança antes das apresentações faz parte do Festival Cuerpo Digital – Mostra “Miradas Corporales”, com curadoria de Sofía Orihuela, da Bolívia.
Logo após as portas foram abertas e as pessoas tiveram acesso ao teatro. Os bailarinos já estavam no palco, aguardando o terceiro sinal. Anayara Martins, Debora Rosa Higa, Nathalia Spósito, Tanara Maciel, Paulo Henrique, Tayla Borges, Ana Carol e Leonardo Borges convidaram o público a entrar no universo das transformações que a poesia de Clarice Lispector evoca.
A Cia. do Mato, neste trabalho, questiona a si mesma e ao público “o quão é importante sair da rotina, experimentar novos caminhos, saborear novas conversas; descobrir corporalmente a fragilidade da mudança e a coragem e arriscar tudo por um algo mais”.
A direção artística é de Chico Neller, iluminação de Expedito di Montebranco, trilha sonora de Jonas Feliz, figurino de Jane Rosa e preparação corporal de Júlio César Floriano.
Após a apresentação, o público teve a oportunidade de entrar em contato com os artistas, o diretor, o iluminador e a crítica de arte Sandra Meyer, professora do Curso de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), convidada pela Fundação de Cultura para participar dos debates com o objetivo de pensar e refletir a dança em Mato Grosso do Sul.
Uma das espectadoras questiona a presença da nudez no espetáculo. O diretor Chico Neller responde que no início da concepção do trabalho ele não pensou em nudez. “Daí a gente foi testando, experimentando coisas e chegamos a esse figurino. Para mim a sensação dos cachorros é muito mais forte por si mesma. A ideia é muito mais forte que a imagem, mas fomos testando e ficou assim”.
Chico fala também sobre a criação do grupo: “A Cia. do Mato foi criada há 16 anos para participar dos festivais de Joinville. Depois fomos saindo dos festivais e nos profissionalizando. Já estamos há dois anos neste processo e ‘Mudança’ é a situação onde a companhia está e para onde está caminhando agora”.
A crítica Sandra Meyer intervém dizendo que os coreógrafos têm certas limitações nos festivais competitivos, como o tempo dos trabalhos, por exemplo. “Essa é uma das coisas mais difíceis. Daí a possibilidade de se profissionalizar e sair apenas deste circuito”.
Uma pessoa na plateia perguntou ao diretor o que seria para ele o pensamento contemporâneo. Chico responde que mesmo quando participava dos festivais em Joinville, vem pensando em tomar cuidado para a dança contemporânea não ser tendenciosa. “Começa a se repetir, não quero rótulos, nada, nem ter medo de experimentar. Os trabalhos hoje são muito lineares. Não estou preocupado se a dança que faço é contemporânea, penso em fazer dança sem muita preocupação sobre o lugar em que a gente estaria neste momento”.
Outro espectador que acompanha os trabalhos de Chico Neller desde a década de 1990 perguntou como ele consegue manter a inspiração deste aquela época. O diretor do “Mudança” explica que está descobrindo muita coisa agora. “Sou muito dramático. Eu achava que eu era sutil, uma pessoa plástica. Eu não tinha essa noção. O outro pode ver, eu não via. Não consigo fazer nada superficialmente. Não estou preocupado se meu trabalho esteticamente agrada. Gosto de experimentar”.
Alguém questiona como está a memória da dança e do teatro no Estado. O iluminador Expedito di Montebranco, que também é ator e diretor teatral, acha que a dança esta mais organizada. “Nós tivemos a Semana do Teatro. Eu me questiono que as pessoas que forem fazer teatro hoje, quais seriam os motivos que elas teriam para fazer teatro. Aqui, como iluminador, vejo como a dança se organiza, [e como ator e diretor teatral,] vejo como o teatro se organiza”.
“A dança sul-mato-grossense está engatinhando em termos de mundo. Fizemos dança durante muito tempo para nós mesmos. Quando olhamos para os grandes centros, para o mundo, a gente se coloca inferior por sermos periféricos. Nossa situação, nossas dificuldades, são as mesas de qualquer artista no País. Esse é um lugar bom para se produzir. A dança precisa parar de olhar para o seu umbigo e olhar para o mundo”, diz Chico Neller.
Sandra diz que uma pessoa como ela, que se desloca de outro lugar para conhecer a produção daqui, pretende iniciar um diálogo. “Às vezes o artista está tão envolvido em sua prática que não há tempo para refletir. A presença da universidade é importante para essa memória. Talvez algum acadêmico se interesse em pesquisar a história. Acredito que isso vai acontecer naturalmente com os cursos de graduação”.
Outra pergunta que surgiu da plateia é como os bailarinos se prepararam fisicamente e psicologicamente. O bailarino Paulo Henrique responde que realizam aulas às segundas, quartas e sextas e ensaios aos sábados, e que graças ao Prêmio Célio Adolfo foi possível ao grupo contratar o preparador físico Júlio César Floriano. “Temos aulas de pilates, ensaiamos bastante para não nos machucar. Mas o impacto [que causamos com os movimentos] é mais pelo barulho”.
A bailarina Debora Rosa Higa completa: “O Júlio trabalhou corpo e mente junto. Este [‘Mudança’] foi o trabalho da companhia em que a gente mais conversou, em que mais pudemos colocar nossa experiência nele”.
A conversa foi encerrada e o público voltou para casa. Mas as apresentações da Semana Pra Dança 2015 continuam nesta quinta-feira (20), com o espetáculo “De Passagem”, da Cia Dançurbana. Os ingressos são limitados a 27 pessoas, que é a quantidade que cabe dentro do ônibus em que acontecerá o espetáculo. A entrada é franca e o ônibus sairá da rua 26 de Agosto, 453, em frente ao Centro Cultural José Octávio Guizzo. Mais informações no Núcleo de Dança da FCMS pelo telefone (67) 3316-9169.
Confira abaixo a poesia de Clarice Lispector que inspirou o espetáculo de hoje, da Cia. do Mato:
MUDANÇA
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa. Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua. Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas. Dê os seus sapatos velhos. Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da cama… Depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de tv, compre outros jornais… leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida. Ame a novidade. Durma mais tarde. Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
A nova vida. Tente. Busque novos amigos. Tente novos amores. Faça novas relações.
Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado… outra marca de sabonete, outro creme dental… Tome banho em novos horários.Use canetas de outras cores. Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco. Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só. E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as. Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino. Experimente coisas novas. Troque novamente. Mude, de novo. Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia. Só o que está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Clarice Lispector