Campo Grande (MS) – O Núcleo Cena Viva, de Dourados, trouxe para o palco do Teatro Aracy Balabanian nesta quarta-feira (20), durante a Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo 2016, a história de uma professora de dança e seu aluno que se apaixonam durante as aulas de dança de salão. A peça “Cheiro de Chuva” se passa no último dia de aula, depois de um ano ensaiando uma coreografia para ser dançada na festa de casamento dele. Ambos, apesar de apaixonados, são incapazes de expressar seus sentimentos.
A peça tem direção conjunta dos atores José Parente, Vânia Marques e do também iluminador e cenógrafo Gil de Medeiros Esper. José e Vânia são casados e vieram de São Paulo para morar em Dourados em 2010, quando ele passou no concurso para professor do curso de Artes Cênicas na Universidade Federal da Grande Dourados. Mas o Núcleo Cena Viva existe como companhia desde 2008 e foi criado como um espaço para trabalhos diferentes com outra dinâmica, com projetos pessoais dos atores/diretores.
O texto da peça é de Bosco Brasil. Parente explica, em debate após a encenação da peça, que o grupo levou um ano para desenvolver o projeto. “Não temos pressa, é um outro tempo de trabalho, a gente vai amadurecendo, pensando. A gente cria trabalhos que têm a ver com nossa percepção do mundo, como cidadão. A gente tem algumas preocupações, percepções, e buscamos textos que tenham a ver com isso”.
Gil disse que sua pesquisa tem a ver com espaço. “Hoje a gente mudou a relação da plateia com os artistas. A peça sempre foi encenada com uma arquibancada no palco, para os espectadores. É a primeira vez que a gente faz com essa formatação”.
A crítica de teatro Daniele Small iniciou sua fala parabenizando o grupo pelo espetáculo e agradecendo às pessoas pela acolhida. Ela percebeu que a peça tem uma relação muito forte pelo endereçamento. “Pode ser desde o autor ao espectador, entre os personagens, entre os atores, dos atores à plateia, quando tem uma quebra na narrativa e tem um jogo de triangulação neste endereçamento. Eles [os atores] falam coisas que gostariam de dizer entre eles e não têm coragem e falam para a gente [público]. Ficou clara essa divisão, tem uma transparência entre eles, uma divisão. Há uma cultura de achar que a ideia de contracenação é olho no olho e nem sempre é assim”.
Daniele observou que a diferença do espaço nas atuações influenciou no ritmo das falas. “Quando muda o espaço muda o tempo. Nos primeiros 20 minutos vocês estavam se adequando e do meio para o final ganharam uma cumplicidade. Tem uma coisa que eu vi no começo que é uma irrupção do estranho nas imagens. É uma peça que traz muitos elementos familiares mas daí você [o ator] pega o banquinho e põe na cabeça. Achei interessante. Uma imagem estranha levanta a espinha da plateia”.
“De fato”, afirma Parente, “seria ótimo se a gente pudesse fazer uma temporada porque aí a gente vai pegando. Mas o grupo se apresenta hoje e depois fica um tempo sem se apresentar. Sobre as imagens estranhas é uma proposta nossa. Meu doutorado foi sobre teatro de objetos. Um dia a gente trouxe os bancos e começou a brincar com eles. De repente é uma coisa para desenvolver mais”.
“É evidente que sim”, continua Gil. “Existe alguma coisa na direção que propõe esse ralentando no começo. O espetáculo começa com mais tempo e eles vão se soltando á medida que o personagem masculino vai ganhando a imaginação. Podemos pensar em outros momentos em que essa estratégia possa ter lugar. Queria te agradecer pelas considerações, obrigada pelo seu olhar atento”.
Sobre o exercício da crítica, José Parente afirmou que ele cresceu com outra ideia de crítica, com base na opinião. “Você, Daniele, traz outro olhar. Não se trata nem de destruir nem de bajular ninguém. Achei muito importante sua presença. Eu gostaria que voc~e falasse sobre o feminino nessa peça, sobre essa personagem feminina”.
Ao que Daniele responde: “Ela é uma mulher urbana, contemporânea, independente. Há um momento de piedade numa fração de segundos e ela decide que não quer isso. É uma mulher adulta, independente, que trabalha. Não tem moralismo nem discurso de culpa por ela se apaixonar por um homem casado. É uma personagem muito próxima da minha vida, do que eu vejo, no âmbito da normalidade”.
Daniele continua sua explanação dizendo sobre a diferença de gerações na crítica de teatro brasileira. “A geração anterior era a do melhor crítico, do mais importante. A minha trabalha em rede. Não tem crítico, tem o grupo. Esse entendimento na lida com o teatro tem um discurso afinado com diferentes críticos de diferentes locais. A crítica tem que vir do teatro. Os próprios artistas devem escrever sobre seu trabalho e saber escrever sobre o trabalho do outro”.
Ela fala sobre o papel historiográfico da crítica. “A crítica é uma forma de estar no mundo. A atitude crítica é uma emancipação das inteligências. O teatro está no mundo. Saber falar sobre o teatro é saber falar sobre o mundo. A crítica tem u papel historiográfico importante. Que a crítica tenha consciência do seu papel de escrever a história. O que determinada peça tem de relevância naquele momento, naquele lugar. Esse é da minha geração, é a geração do entusiasmo com a crítica, de fazer parte do debate público”.
“Um espaço de reflexão sobre teatro”, diz Parente, “são as revistas acadêmicas. Temos revistas muito boas na internet. Tem críticas muito aprofundadas. Essas leituras contribuem para ampliar nosso repertório. A internet facilitou demais a vida nesse sentido”.
A atriz Vânia compartilhou com o público sua experiência desde que começou a fazer teatro. “Eu vejo tudo. Quando eu estou carente eu vou para a internet. Deveríamos ter pelo menos a introdução da história do teatro. Eu nunca esperei professor, eu sempre fui atrás. Eu aproveito os debates da faculdade para falar o que eu penso”. Vânia cursa Artes Cênicas na UFGD.
Para Gil, a ideia de fazer teatro e de pensar o que se faz em teatro são indissociáveis. “Vamos pensar sobre o que a gente está fazendo, como isso pode chegar no público. Esse pensar, estudar o teatro, precisa ser prazeroso, é parte do processo. Quando a gente lê descobre muita coisa do que a gente pensa sobre aquilo. Isso é fundamental”.
Ele afirma que só sabe criar com o grupo. “É isso que dá o tempero de cada trabalho. A gente ficou amigo. O processo que não tem prazer não dá certo. O teatro é o encontro”. Vânia completa a ideia dizendo que está feliz em Dourados. “No curso de Artes Cênicas a gente criou uma família. É muito gostoso”.
“Direção em trio a gente faz tudo junto”, fala Gil. “No Brasil isso tem virado uma prática mais intensa. Pode ser pela falta de recurso. Isso faz com que a gente entre no processo com muita vontade”.
Sobre o exercício da direção, Daniele diz que no Brasil há pouquíssimas oportunidades de formação de diretores. “É uma profissão incrível. Recentemente fiz algumas entrevistas sobre o processo de direção com alguns diretores [www.questaodecritica.com.br]. É muito bacana ouvir os diretores falando sobre o processo de direção”.
A secretária adjunta de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação, Andréa Freire, estava presente no teatro e parabenizou o grupo pelo trabalho, que ela qualificou como diferente, novo. “Estou impressionada com a qualidade do debate. Teatro é pensamento e ação. Refletir com o público dá oportunidade a várias reflexões diferentes. A gente fica refletindo o desafio na construção dessa política pública. Devemos criar momentos para que estejamos junto, dialogando. Há muito por fazer. Precisamos descobrir caminhos para mudar uma situação. A política pública se constrói em cima da demanda. O Boca de Cena pode oportunizar essa descoberta do que a gente precisa fazer”.
Os espetáculos gratuitos da Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo 2016 continuam ao longo desta semana. Amanhã entra em cena a Cia. Teatro Dois, de Campo Grande, com a peça “Subcutâneo”, às 20 horas, no Teatro Aracy Balabanian do Centro Cultural José Octávio Guizzo.
Fotos: Helton Perez – Vaca Azul