Campo Grande (MS) – Sonhadores, pioneiros e transformadores. Assim são os homenageados do Festival Boca de Cena 2023. A percepção do tempo onde estavam e com ela a necessidade de mudar as coisas ao redor através do teatro e do circo talvez seja o que eles mais têm em comum.
“O mundo passava por grandes transformações naquela época, mudando atitudes, formas de pensar e de agir, quebrando preconceitos, foi um momento muito rico onde experimentamos as maiores mudanças sociais, científicas, econômicas, e, consequentemente as mudanças culturais, precisávamos agir”, contou Américo Calheiros.
Como professor e teatrólogo, sentiu no peito a necessidade de acompanhar tais mudanças, estreitando assim os laços entre educação e cultura no Estado. “Fomos pioneiros na questão do teatro na educação como instrumento do desenvolvimento do pensamento crítico, na forma de ver, encarar o mundo e mudar as coisas ao nosso redor”, lembrou.
Nas décadas de 70 e 80, Américo incentivou a criação de um dos grupos de teatro mais importantes do Estado, o Grupo Teatral Amador Campo-grandense – GUTAC, acompanhado por Cristina Mato Grosso e logo depois do Grupo Teatral Infantil Campo-Grandense (GUTIC), o qual introduziu teatro em escolas e comunidades incentivando um grande número de artistas locais.
Sendo o teatro uma atividade extremamente reflexiva e política, conta Américo que chegou a ter textos censurados pela ditadura militar. “Havia um choque natural de gerações passadas com tudo de novo que a gente propunha na época. Ensaiávamos até madrugada impulsionados pelo desejo de fazer alguma coisa que nos mostrasse novos caminhos. O teatro tem essa força e vitalidade que faz com que as pessoas que se aproximam dele joguem tudo para cima e vão em frente”, revelou Calheiros.
Na noite de abertura da Mostra Boca de Cena 2023, o homenageado declarou: “A arte de fazer teatro te pega e não te larga nunca mais. Foi assim comigo. Eu cheguei nessa caminhada que fiz deste os anos 1970 até os dias de hoje graças, exclusivamente, ao desafio que o teatro implantou em minha vida. Eu comecei a fazer teatro aqui nesse espaço, era um anfiteatro do Colégio Dom Bosco, e a gente saía da faculdade e vinha ensaiar. De lá para cá percorremos um trecho grande dentro do teatro e que foi também me interligando com todas as formas de arte. Porque o teatro tem essa força tão grande de estabelecer pontes e de ampliar a tua visão para além do seu eu e dar valor à democracia que existe no tratado com as demais pessoas. O teatro não é uma arte isolada, nunca foi e nunca será. Com toda a sua força sacra e profana, ele nos ensina a ir além do nosso próprio nariz e ver o mundo com todas as suas belezas e mazelas”.
“Todos esses espetáculos em que trabalhei, que ajudei a montar, e todo o caminho que trilhei, eu tive a oportunidade de me enriquecer como ser humano e me enriquecer como ser político dentro da estrutura da cultura e da arte. Porque se nós não tivermos o exercício político, o teatro vai morrer. É através dessa força que o teatro tem, unida com o nosso exercício político, com a nossa união, com nosso trabalho em conjunto ao trabalho que é feito com todos, que a gente consegue sobreviver. O teatro tem a força da transformação. E essa é a força política do teatro, e é dela que não podemos nos afastar nunca. Parabéns a todos neste Dia Internacional do Teatro, à Fundação de Cultura, pelo trabalho que está realizando neste momento neste Boca de Cena, esperamos que seja um trabalho que venha e traga em seu bojo o reconhecimento do teatro sul-mato-grossense”.
Seguindo o mesmo impulso de mudança, no município de Três Lagoas, cidade onde nasceu, o ator e diretor Paulo Sanches acabou transformando o antigo grupo de teatro Esperança em Jesus, ligado à igreja a que pertencia, no grupo Comitê Revolucionário do Artista Jovem (CRAJ), desfazendo o vínculo com a instituição religiosa.
Paulo conta que criou o grupo na igreja em decorrência de um grave acidente de trânsito que o fez se ancorar em rezas e voltar a frequentar missas. “O padre, vendo meu interesse por teatro e sabendo do quanto eu sofria pela impossibilidade de atuar, me sugeriu que criasse um grupo de teatro na igreja, foi bom para me renovar a esperança e logo depois poder criar o CRAJ”, detalhou Sanches.
Iniciando sua carreira artística há mais de 60 anos, ele fugiu de casa aos 12 anos de idade para integrar circos mambembes onde atuava como palhaço, ator e trapezista. Dirigiu peças que seguem linha cômica e popular e as apresenta em escolas, mostras e festivais do Estado. Dentre elas destacam-se: O Capeta de Caruaru (1999), Amago Reencontro (2001), Crácula, um vampiro em tempos de Aids (2002), o sítio do pica-pau amarelo – a pílula falante (2004), Samba nosso de cada dia (2004) e Sopa de Pedra (2009).
Além de diretor, Paulo Sanches já fez intervenções em hospitais e escolas com grupos de palhaços. Dirigiu também o grupo Municipal de Circo e Teatro Liberdade de Três Lagoas.
“Uma vez na vida a gente tem o agradecimento, o reconhecimento das pessoas. Aqui em Mato Grosso do Sul, desde a década de 1980, eu faço teatro em Três Lagoas. E sempre bem quisto, sempre bem recebido por todos, por colegas, diretores, presidentes das associações. Hoje eu me sinto meio velho, meio louco, na missão de triunfar. Eu faço teatro desde 1960, em Três Lagoas, e formei muitos atores circenses. Agradeço pela homenagem e a divido com minha esposa, que me ajuda muito em tudo: figurino, texto. Com 80 anos é difícil a gente dizer que fica emocionado, mas fiquei sim, muito emocionado. Já recebi diversos prêmios em lugares em que estive, em São Paulo, em Santos, em Bauru, Três Lagoas, mas esse aqui me deixou emocionado. Muito obrigado”, declarou o homenageado na noite de abertura do Boca de Cena 2023.
Parafraseando Belchior, fica claro que para os homenageados do Festival Boca de Cena deste ano, “amar e mudar as coisas interessa mais”.
Texto: Alexander Onça e Karina Lima
Foto: Ricardo Gomes