Campo Grande (MS) – O segundo dia de espetáculos da Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo 2016 trouxe ao público o espetáculo “O Diário de Madalena”, do Grupo Palco, de Campo Grande. A peça foi encenada com entrada gratuita na noite desta terça-feira (19), às 20 horas, no Teatro Aracy Balabanian do Centro Cultural José Octávio Guizzo.
Com três atores em cena – Expedito Di Montebranco (o pai autoritário), Jurema de Castro (a filha violentada) e Bruno Moser (o irmão defensor) – a peça retratou a dura realidade da violência doméstica, com ambientação no Pantanal e poesias de Manoel de Barros. Como diz a sinopse do espetáculo: “São tantas Madalenas, Marias e tantas outras mulheres que tiveram sua vida oprimida pela violência doméstica. Sabiá sente a dor da irmã e a leva, num jogo de palavras [citações de Manoel de Barros], para um mundo diferente”.
Após a encenação do espetáculo, com a mediação de Jair Damasceno, do Colegiado Setorial de Teatro, os atores participaram de um bate-papo com a plateia e da exposição de uma visão crítica de Daniele Avila Small, contratada pela Secretaria de Estado de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação para acompanhar a Mostra elaborar a sua crítica sobre o evento.
O primeiro a falar foi Expedito Di Montebranco, que apresentou o Grupo Palco, criado em 1992 por Marcos Alexandre. Em 1995 Expedito assumiu a direção do grupo e explicou que procura não repetir gêneros. “Primeiro fazemos uma comédia, no próximo espetáculo, um drama. A maioria foi feita com recursos próprios. Adoro escrever, gosto de dirigir, atuar. Rodamos o interior d Estado com a peça ‘Socorro, minha casa é uma comédia’. Depois deu vontade de trabalhar textos de Manoel de Barros. Comecei a estudar os textos e tentar entender como o Manoel escrevia. Eu tinha a poesia do Manoel, sua forma de escrever e a temática da violência doméstica. Quando o texto estava pronto, falei com o Manoel, três anos antes de ele partir. Ele autorizou a usar seus textos na peça”.
Expedito diz que teve a preocupação de abordar a temática da violência doméstica com cuidado. “Fiquei pensando nessas mulheres, nesses meninos, como contar tudo isso sem agredir, para que a pessoa saia mais consciente. A proposta era contar as lendas do pantanal também. O espetáculo está sendo moldado nessa linha de pensamento: pantanal, viol~encia e poesia”.
Começa a intervenção da crítica de teatro Daniele, que agradece a oportunidade de acompanhar a peça e agradece a presença das pessoas. “Interessa saber os projetos de cada grupo. Vocês procuram não repetir o gênero e trabalham com questões sociais. É importante fazer com um nível de linguagem efetivo para retratar uma situação chamando o pensamento crítico sobre ela. Sobre não repetir o gênero, isso pode acarretar o não aprofundamento de linguagem. Quando o grupo mergulha pode desenvolver um vocabulário cênico que ele faça melhor. Nesse aspecto, repetir pode ser bacana”.
Daniele abordou a questão de relacionar teatro com poesia. “Trazer a poesia para o teatro é muito difícil. Quanto a retratar a violência no teatro, a dificuldade é de não ter a coisa em si, apenas a alusão ao fato. A questão é sempre o como. Queria perguntar para vocês sobre se quando entra a poesia na dramaturgia, ela pode quebrar ou conduzir a narrativa. Ficou um pouco confuso para mim. Deixa mais claro a história que está sendo contata e o impulso lúdico. Achei especificamente difícil uma certa beleza na violência, é muito perigoso isso. O pai é um personagem hipócrita com uma fala bela. Será que isso não traz uma identificação com o pai. A imagem da televisão é muito boa, muito potente. O rádio vem com o som, mas não se sabe se é música cênica ou o rádio tocando. Tem muita coisa junto, tem umas três ou quatro peças aqui. Teria sido legal escolher mais o foco. Os desejos de muitas coisas provoca momentos de indefinição na dramaturgia que aparece na atuação dos corpos. Seria interessante canalizar esses desejos para uma comunicabilidade mais contundente”.
É Expedito quem responde: “Talvez, com a poesia, ele acabe sendo um cara bacana, o monstro que está dentro da sua casa muitas vezes é o cara bacana para a sociedade. Ele [o personagem do pai] acaba condenando as pessoas. Tem a imagem do São João de Corumbá, em que ele acredita. Depois ele condena a cidade, a culpa é da cidade. Ele culpa a cidade pelo que ele faz com a menina. Ele vê na filha a figura da mãe. Eu fui por esse caminho em que ele tenta culpar o outro e tenta ficar bonito. A menina não fica mais tão assustada e percebe que ele, o pai, vai ter que sair. A fé dele está esquisita, ele diz que Deus vai perdoar o que ele fez”.
Expedito disse que analisou para ver como colocar Manoel de Barros e trazer a doçura nesse contexto de violência. “É uma fuga da filha. Esse rádio não liga sozinho, tem vida própria. No Pantanal tem pernilongo mas tem uma poesia. É uma outra realidade”.
O mediador Jair Damasceno disse perceber na peça a ideia de que a violência é imperdoável e pede para a atriz Jurema falar sobre o conteúdo dramático de sua personagem. No que ela responde que a Madalena da peça tem 15 anos, e ela tem 42. “Eu vim da roça, sou uma pessoa sofrida mas não tive violência dentro de casa. Fui construindo a Madalena lendo matérias sobre o tema, pesquisando. Meu pai era autoritário mas nunca me bateu. Fui conversando com pessoas que sofreram violência para compor a personagem”.
Bruno Moser informou que quando participou da peça pela primeira vez, como o irmão Sabiá, o espetáculo já tinha sido montado uma vez. “Quem tinha feito o Sabiá foi o Elânio Rodrigues e aí depois eu entrei nesse contexto. O Sabiá representa o macho beta por que a força que o pai tem naquele espaço é muito grande. A gente se remete a essa época em que eles vivem, eles estão isolados. Ele tenta proteger a irmã. O espetáculo vai para um mundo imaginário. Quando você [Daniele] disse da beleza da violência eu não conseguia perceber por esse lado. Eu só vejo a violência, é a violência do começo ao fim. Quando o pai entra em cena eu não relaxo em nenhum momento. Nesse ponto foi maravilhosa a sua participação”.
Ao ser perguntado sobre suas referências em teatro, Bruno explica que tem alguns espetáculos que vêm para Campo Grande, de onde ele tira algumas ideias. “Eu tenho deixado de ver teatro por questões familiares. Eu fiz dois trabalhos e um deles, que eu gostei muito, é “A Serpente”, do Nelson Rodrigues. Brecht também. Eu sou mais um operário do teatro que um intelectual do teatro”.
Jurema fala que sua referência são os festivais. Quando trabalhei com Andréa Freire no grupo dela, estudamos Nelson Rodrigues. Uma pessoa que eu queria ter visto atuar e não vi foi o Raul Cortez”.
Expedito completa dizendo que sempre que posso vai assistir aos espetáculos. “Tenho visto muita coisa. Tenho um monte de livros e não consigo me aprofundar num autor. Junto com a poesia. Fico transitando entre tudo, não consigo parar num só. Um que eu gostaria de estudar mais é o Pirandello”.
“É muito importante ver quem ficou na memória, quem está do nosso lado nas trincheiras”, diz Daniele. “Eu organizei no Rio de Janeiro por duas vezes a Mostra de Teatro Filmado. É um fato a gente entrar em contato tendo em vista a dificuldade de circulação. Tem coisa muito bem filmada de teatro na internet. Dá para ter uma ideia das propostas estéticas mesmo que a gente não possa ter a experiência da presença no teatro”.
Depois que a crítica teatral e os atores da peça dialogaram, a participação do público começou. Letícia, assistente social que trabalha na Casa da Mulher Brasileira, parabenizou o grupo por divulgar e conversar sobre o tema. “Estou encantada, foi muito interessante. A violência psicológica está se sobressaindo hoje, está sendo muito questionada e as mulheres estão denunciando. Que vocês façam muito sucesso com essa peça”.
Tauá, terapeuta ocupacional, disse conhecer muitas Madalenas. “Uma fala que me marcou foi quando você [Jurema, atuando como Madalena na peça] disse que tinha um esgoto dentro de você. Vocês tocam numa ferida social muito grande, em que a vítima é silenciada o tempo todo. Concordo com a sua [Daniele] fala sobre o perigo de colocar a poesia numa situação de violência. Colocar a mulher como objeto e descaracterizá-la como ser humano… Você [Jurema] está dando voz a muitas Madalenas”.
Fábio, produtor audiovisual, disse que as pessoas rapidamente se identificam com os elementos do palco porque são daqui. E pergunta a Daniele como ela se prepara para interpretar elementos desconhecidos dela. “Não tem como a gente se preparar”, responde a crítica teatral. “Quanto mais específico maior é a possibilidade de ter meu ponto de vista. Vir de fora não é como um olhar especializado, é simplesmente o olhar do outro. Eu vou ver do ponto de vista do Rio de Janeiro. É com essa experiência que eu vou ver o Pantanal do Expedito. A preparação é o desejo. No teatro se você procurar sentido em tudo, perde a experiência”.
Cauê, estudante de Direito, diz ter sentido falta de saber os detalhes da origem da violência na peça, o motivo pelo qual o pai foi violento com os filhos. Daniele responde a ele que a origem não existe porque a violência não tem justificativa. Expedito se diz aberto ao diálogo. “Não colocamos em cena porque ia tornar mais comprida a história. A morte da mãe, o pai foi na cidade, não tinha plano de saúde, daí a mãe morreu. Nós não quisemos falar sobre isso. Nós pensamos em inúmeras possibilidades, inclusive de esse menino tomar o lugar do pai, com o mesmo comportamento. O grande lance é deixar aberto”.
O debate foi encerrado com um convite feito à plateia para que participe das discussões da quarta-feira (20), em que o Grupo Palco vai abordar, das 14 às 16 horas, no auditório do Museu da Imagem e do Som (MIS), “O papel do teatro como olhar questionador no enfrentamento à violência doméstica”. A entrada é franca.