Corumbá (MS) – A linguagem e a resistência da periferia das cidades e de quem vive na linha imaginária das fronteiras concentraram as discussões sobre a literatura na América do Sul no segundo dia do Quebra-Torto com Letras, um dos eventos mais marcante e presente em todas as edições do Festival América do Sul Pantanal (Fasp). No eixo do bate-papo entre escritores, pesquisadores e artistas a literatura marginal e o portunhol, a língua do Mercosul.
De um lado, o romancista, contista, poeta e empreendedor paulista Reginaldo Ferreira da Silva, o Férrez, um ex-favelado que utiliza em suas obras a chamada literatura marginal por influência da vivência e as variantes linguísticas usada na periferia. Na outra ponta da mesa, o uruguaio Fabián Severo Gonzales, que nasceu na cidade de Artiga, margens do Rio Uruguai, fronteira com o Brasil, e ali cresceu entre conflitos de identidade e censura linguística.
“Nasci no meio de uma mistura linguística, onde o portunhol muitas vezes não é aceito para se preservar a língua de origem e se sentir uruguaio”, diz Fábian, 38 anos, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura, em 2017, com o romance Viralata. “Quem nasce na fronteira, nasce no meio das palavras, e acredito que o portunhol é o futuro da língua latina.”
Eu escrevo para existir
Fabián, que, ao se expressar, fala o espanhol e mistura portunhol com português, leu Manoel de Barros (“até então eu acreditava que o meu quintal era o maior do mundo”) e Guimarães Rosa. “Escrevo todos os dias para existir e a literatura salvou um menino também da periferia, pobre, ouvindo os sons e o silêncio da minha mãe e minha avó”, citou.
Fundador do DaSul, grupo envolvido na promoção e fomento a evento culturais ligados ao movimento hip-hop, o paulista Férrez, 43, publicou diversos livros retratando a realidade vividas na linha marginal, a qual alimenta a agressividade, a acidez e a ironia dos seus textos, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006) e Deus Foi Almoçar (2012). “Meu, não tem como você escrever uma coisa, sair na esquina, ver um cara morto e não sentir nada…”, diz.
Dentro desse contexto de literatura marginal – ou literatura de resistência – se insere o jornalista e escritor de Ladário, Nelson Urt, 65, também convidado do Quebra-Torto deste sábado (16), no Moinho Cultural Sul-Americano. Seus poemas e lampejos literários passam pela intolerância, retratando personagens urbanas que vivem à margem, como a catadora de lixo Maria Preta, título de um de seus livros confeccionados artesanalmente, com capa de papelão.
Respeito às diversidades
Ao retornar às suas origens, depois de trabalhar por três décadas nos principais meios de comunicação de São Paulo, Urt decidiu criar em 2019 uma editora, a Maria Preta Cartonera, pela qual lançou quatro livros de poesia, contos e crônicas. “Temos aqui na fronteira uma literatura marginal que não aparece, é invisível, e nada melhor do que um evento como esse (Quebra-Torto) para motivar esses grupos a difundir suas mensagens e críticas sociais”, observou.
Para a mediadora do encontro Rosangela Villa, professora e pesquisadora da língua portuguesa, a abordagem do Quebra-Torto propiciou ao público, formado por estudantes, artistas, ativistas culturais, visitantes e produtores, um entendimento maior da diversidade cultural dos países latino-americanos e dos estados e uma compreensão universal quando se trata de literatura marginal.
“Por ser uma literatura contemporânea mais real e despojada, usando vernáculo mais simples e falando das experiências de vida sofrida, esse tipo de literatura interage mais rapidamente com o público, ao contrário da literatura tida elitista, mais conservadora e clássica”, comentou. “O Quebra-Torto é um dos espaços mais expressivos do festival, onde as pessoas tem a oportunidade de conhecer e respeitar as diversidades fronteiriças e culturais”, concluiu.
Lançamento de livros
O Quebra-Torto com Letras desta manhã de sábado reuniu ainda dois escritores: Marcelo Silva de Oliveira, ambientalista, pesquisador e fotógrafo, que lançou o livro “Estrada-Parque Pantanal, Estrada da Integração; e Samuel Medeiros Xavier, membro da Academia Sul-mato-grossense de Letras, auto de “Cartas de Além Mar”, também lançada no evento.
Presentes ao bate-papo a diretora-presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Mara Caseiro; prefeito de Corumbá, Marcelo Iunes; escritores regionais, dentre eles Henrique Medeiros, presidente da Academia Sul-mato-grossense de Letras, e o corumbaense Augusto Proença; e o cantor e compositor Geraldo Espindola. Ao final, foi servido o quebra-torto pantaneiro, cujo aroma do macarrão com carne seca e do carreteiro com banana se espalhou pelo recinto.
Texto: Silvio Andrade