Campo Grande (MS) – Emoção, sensibilidade e um rico debate sobre a luta pela inclusão social e acessibilidade da pessoa com deficiência marcou a primeira exibição de filmes do projeto Inclusão na Tela na Fundação de Cultura de MS. Neste projeto, a FCMS é parceira da UEMS, e para este primeiro evento realizado no MIS, na noite desta segunda-feira (05.08), foi escolhido o filme “Amizades Improváveis”, dirigido por Rob Burnett.
O longa conta a história de Trevor, um jovem de 18 anos portador de Distrofia Muscular de Duchenne, e sua relação com seu cuidador, Ben, um escritor que decide tornar-se cuidador após sofrer uma tragédia pessoal. Aventurando-se pela primeira vez além das fronteiras de seu mundo milimetricamente calculado, eles descobrem o que é ter esperança e amigos de verdade.
O debate após a exibição trouxe uma ampla visão sobre as dificuldades pelas quais passam os deficientes e pessoas com doenças raras. Rosana Puga de Moraes Martinez, presidente da Associação de Doenças Neuromusculares (Adone-MS) e mãe do jornalista Pedro Martínez, portador da Distrofia Muscular de Duchenne, doença abordada pelo filme, trouxeram sua experiência para o público.
Segundo Rosana, 90% das doenças raras são genéticas e possuem uma sintomatologia severa que tem impacto na própria pessoa e nos familiares. “Setenta e oito por cento dos pais no 1º ano do diagnóstico abandona a família. O doente fica sob a responsabilidade da mãe, como mostra o filme, que desenvolve uma superproteção, visando preservar a vida do filho. Mas ela se esquece de que por trás daquela doença existe uma pessoa, um ser humano. No filme, a mãe do personagem o criou numa redoma, com uma rotina cotidiana fixa. Mas nós sabemos que a vida é uma surpresa para todos nós, envolve riscos para todos, independente de a pessoa ter uma doença ou não. Não dá para tirar do outro o direito de viver a vida”, diz Rosana
No filme, a mãe do adolescente não queria que ele criasse um vínculo com o cuidador, por medo de ele se machucar. “Essa mãe entendia que ele não era capaz de conquistar o afeto das pessoas por ele ser portador de uma doença rara. Nós vivemos tendo relações humanas, e nós nos frustramos também, isso faz parte da vida. No longa, o cuidador proporcionou essa experiência de vida para o jovem. Ele conseguiu sobreviver à decepção com o pai. O filme nos traz essa reflexão pra gente: por trás de cada condição existe uma pessoa que tem as mesmas necessidades, direitos e anseios que todos têm”.
“Quando a gente recebe um diagnóstico, temos que fazer escolhas. Independente da condição física da pessoa, há um outro olhar. É questão de abrir as portas da nossa alma para outro olhar. O mundo está cheio de pessoas com doenças raras que são vitoriosas. Apesar de esse quadro ser preocupante, é mais difícil no nosso país, porque as políticas públicas não acompanham os novos suportes que faz com que as pessoas tenham mais qualidade e expectativa de vida, proporcionados pelos avanços científicos e tecnológicos. O tempo que temos aqui não nos pertence. Diagnóstico não é destino. O tempo da gente é a gente que faz”, emociona Rosana com seu depoimento.
O filho Pedro Martínez, de 31 anos, é jornalista, tem uma coluna num site de notícias de Campo Grande e trabalha na Câmara Municipal. Ele falou aos presentes sobre a sua experiência com a distrofia muscular ao longo de sua vida. “O mais legal de falar sobre o assunto é por causa da minha família. Meu pai, minha mãe, eu nunca estive nessa redoma em que o personagem do filme estava, meus pais sempre me entregaram a verdade, e nisso eu baseei as escolhas que fiz na minha vida. Eu decidi que eu não ia ficar parado. Eu sabia que não ia melhorar, maqs se fizesse o tratamento e tomasse os remédios, eu poderia viver bem. Decidi seguir com as coisas que eu sempre quis. Frequentei escola normal, fui sempre inserido com pessoas comuns, fui ter a vida como qualquer pessoa: viajo, saio, não fico parado em casa assistindo a à TV. Eu decidi que eu via viver”.
Pedro fala que não foi superprotegido pelos pais, como o garoto do filme: “Como meus pais me ensinaram a não ter medo, fui aprendendo com minhas experiências, não fui superprotegido. Eu tenho um círculo de amigos enorme e tenho facilidade com as mulheres, sou comunicativo. E medo de relacionamento qualquer pessoa tem. As coisas podem ser diferentes. Acho que vim aqui para fazer esse paralelo e poder falar. É só ter força de vontade e fazer as coisas, como qualquer outra pessoa”, esclarece Pedro.
A psicóloga Caroline Santos Fontoura Cruz, que trabalha a sexualidade com pessoas com deficiência, falou um pouco sobre o seu trabalho e sua experiência ao esclarecer pessoas com deficiência e suas família sobre a sexualidade. “Sexologia é um tabu que nós temos quando a pessoa tem uma doença ou necessidades especiais. As pessoas têm medo de falar sobre isso, daí quando a gente volta o olhar para a pessoa diferente é como se ela fosse assexuada, como se fosse uma criança, sem desejo sexual. A sexualidade não é só ligada ao órgão sexual, está ligada à cabeça. Existem várias alternativas de medicamentos, injeção, próteses, para aas pessoas com deficiência; existem outros recursos. Os pais não imaginam que uma pessoa que não é da família vai ter um amor, vai se interessar pelo filho ou filha com deficiência. O meio social coloca muita carga em cima de quem é diferente”, diz Caroline.
Ela explica que os padrões de beleza que o meio social impõe atingem também os deficientes e portadores de doenças raras. “Para isso é necessário apoio, do médico, da família. É preciso conversar abertamente para saber quais são as alternativas, com o médico, urologista ou ginecologista, para evitar criar uma demanda de filhos que a família vai cuidar depois. Por esse tabu da sexualidade cria-se um problema muito grande em vários níveis. A melhor chave é conversar”.
“É um desafio muito grande essa questão da sexualidade, por exemplo, para pessoas que tiveram um acidente, AVC, e têm que viver numa nova situação. Tem que explorar os limites, usar a imaginação, saber quais são as vontades e aceitar o outro”, diz Caroline.
A Rosana, mãe do Pedro, concorda: “A gente tem que desconstruir alguma coisa porque não tem manual pra isso. Você entende que a única forma que você tem de permitir que aquela pessoa tenha uma vida é abrir a sua cabeça”.
Ivone Angela dos Santos, especialista em acessibilidade cultural da FCMS, diz que é fundamental o papel do poder público em promover acessibilidade aos espaços públicos e eventos culturais. “Aqui na Fundação de Cultura temos museus, vários espaços, e acontecem vários eventos, é dever disponibilizar recursos para as pessoas terem acesso igual. No Festival de Inverno de Bonito deste ano fizemos uma ‘escutadoria’ para todas as pessoas com deficiência, queríamos ouvi-las para saber como era a participação das pessoas no Festival. Conseguimos sensibilizar algumas pessoas em Bonito, como donos de hotéis e locais de passeio. É fazendo essas ações que as pessoas vão percebendo seus direitos. Se elas ficam escondidas dentro de casa, as coisas não vão acontecer. Mas se elas procuram seus direitos, todos vão ter que se mobilizar para fazer acontecer. Todos temos os mesmos direitos”, finaliza Ivone.
A proposta é que sejam exibidos a cada dois meses sempre filmes com temática sobre a inclusão social, inicialmente, no MIS. Esta periodicidade é necessária para providenciar os recursos acessíveis. Todos os longas-metragens possuem recursos acessíveis, sendo audiodescrição (para cegos), legendas e um intérprete em Libras (para surdos). Cada filme tem a proposta de abordar uma situação específica envolvendo deficientes e portadores de doenças raras. Mais informações sobre as próximas exibições pelo telefone (67) 3316-9178.
Fotos: Luciane Toledo – MIS