Hendy’a Rapykwere finaliza gravações e anuncia um marco para o cinema indígena LGBTQIAPN+

  • Publicado em 09 set 2025 • por Karina Medeiros de Lima •

  • Curta-metragem foi gravado em Douradina (MS) e Dourados (MS) e tem elenco 100% indígena

    Na última semana, encerraram-se as filmagens de Hendy’a Rapykwere, curta-metragem de aproximadamente 17 minutos que une documentário, ficção e realismo fantástico para dar corpo a uma história inédita no cinema brasileiro: a luta e a espiritualidade de jovens indígenas LGBTQIAPN+. Gravado em território de retomada na região de Douradina (MS) e na maior aldeia urbana do Brasil, Jaguapiru (Dourados – MS), o filme tem elenco 100% indígena e uma equipe técnica majoritariamente formada por pessoas negras, pardas e indígenas do interior do estado, reafirmando o compromisso com a representatividade e a inclusão em todas as etapas do processo criativo.

    A narrativa acompanha Gualoy KG, jovem Guarani-Kaiowá de 20 anos que se tornou referência na luta pela diversidade sexual e de gênero em comunidades indígenas. Liderança do coletivo Juventude Indígena Diversidade Guarani/Kaiowá MS, Gualoy leva para a tela tanto suas vivências pessoais quanto as de outros jovens LGBTQIAPN+ indígenas, traduzindo em roteiro os desafios, a dor e a força de existir em territórios onde ainda ecoam violências coloniais e o peso de fundamentalismos religiosos.

    Em meio a essa realidade, o curta faz emergir a figura de Tybyra do Maranhão, indígena Tupinambá executado brutalmente em 1614, considerado o primeiro assassinato de pessoa LGBTQIAPN+ das Américas. Condenado pelos colonizadores franceses por “sodomia”, Tybyra foi amarrado a um canhão e lançado ao mar — sua memória, por séculos silenciada, ressurge agora no cinema como símbolo de resistência e guia espiritual. Interpretada pela atriz trans indígena Andrya Kiga, do povo Bororo (MT), Tybyra aparece como presença mítica, trazendo ao protagonista e ao público a lembrança de que as lutas de hoje têm raízes profundas na história.

    “Minha inspiração vem da cosmovisão indígena, dessa forma tão rica de enxergar o mundo em que o real, o mítico e o espiritual caminham juntos. Esse filme só existe porque é coletivo, porque o roteiro foi moldado pelas vivências trazidas pela comunidade. Eu entendo meu lugar como um facilitador, alguém que cria condições para que essas vozes ecoem com força”, afirma Marcus Teles, diretor e um dos roteiristas do curta.

    Para Michele Kaiowá, produtora e roteirista, a obra é fruto de coragem e resistência: “Gravar dentro do território Guarani-Kaiowá foi um desafio, entre os medos e as violências que ainda enfrentamos, mas também uma afirmação de que precisamos mostrar ao mundo a luta de jovens indígenas LGBTQIAPN+. É emocionante saber que estamos registrando não apenas a dor, mas também a força, a espiritualidade e a esperança de um povo que resiste para existir”.

    A experiência foi igualmente transformadora para Gualoy, que atua no filme e contribuiu com o roteiro. “Nunca pensei que fosse atuar. Venho da militância, mas essa atuação é uma forma de liberdade espiritual. A cena em que Tybyra entrega o colar foi a mais marcante, porque trouxe a lembrança da minha avó, a continuidade do caminho do meu avô, a reza que me sustenta. Esse filme é fortalecimento — da cultura, da convivência e da nossa espiritualidade. É um espelho para que jovens indígenas LGBTQIAPN+ se reconheçam e percebam que não estão sozinhos”.

    A presença de Tybyra deu ao curta uma força ancestral. Andrya Kiga traduz essa dimensão em sua fala: “Tybyra tem a essência de um corpo livre dos padrões de gênero. Sua alma é liberdade, como o vento que atravessa tudo. Para mim, como mulher indígena trans, é um privilégio e uma conexão espiritual poder trazê-la à tela. É um corpo que foi apagado pela violência colonial, mas que agora retorna como guia, lembrando que resistimos para existir. Cada olhar de Tibira é um chamado à luta, e também um abraço de esperança para quem ainda busca força para ser quem é”.

    Em sua estrutura híbrida, Hendy’a Rapykwere cria uma narrativa em que a ficção se alimenta da realidade e a realidade se abre para o fantástico. A água, presente em cenas marcantes, simboliza tanto a dor quanto a cura, a passagem e a permanência. O colar entregue por Tybyra é mais que um adereço: é um pacto espiritual, um elo entre passado e futuro, tradição e diversidade.

    Mais do que contar uma história, o filme abre caminho para outras. Ao levar para a tela a luta indígena LGBTQIAPN+, o curta se torna instrumento de afirmação identitária, mas também de denúncia, diálogo e transformação. “O audiovisual pode ser espelho e megafone. Para os povos indígenas, fortalece a identidade e reafirma memórias; para a sociedade em geral, é um chamado à escuta e ao respeito”, resume o diretor Marcus Teles.

    Finalizadas as gravações, Hendy’a Rapykwere segue agora para montagem e finalização, com previsão de circular em festivais e mostras audiovisuais, além de debates em universidades públicas. Seu percurso será também o de fortalecer a representatividade no audiovisual sul-mato-grossense e nacional, mostrando que o cinema indígena LGBTQIAPN+ não é apenas necessário, mas urgente.

    Este projeto conta com investimento da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), do Ministério da Cultura (MinC), por meio de edital da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), autarquia do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul.

    Com informações da Assessoria

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