Publicado em 22 ago 2025 • por Daniel •
Entre lembranças e lições de vida, Festival de Inverno de Bonito celebra a guardiã da tradição berranteira
Na Casa da Memória Raída, durante o Festival de Inverno de Bonito, a força da tradição pantaneira encontra sua voz no som grave do berrante. Quem conduz essa memória é Ramona Vieira de Souza, 79 anos, mulher que durante décadas esteve à frente das comitivas pantaneiras como ponteira, papel de liderança geralmente reservado aos homens. Hoje, seu toque ressoa não apenas como guia de boiadas, mas como símbolo de resistência feminina e da história cultural da Serra da Bodoquena e do Pantanal.
Ramona carrega em seu sobrenome a marca de uma linhagem de mulheres fortes. É filha de Raída, última companheira de Silvino Jacques, célebre bandoleiro do Mato Grosso do Sul. A história do casal, que mistura aventura, paixão e rebeldia, ecoa no imaginário popular como uma versão regional de Lampião e Maria Bonita.
Segundo Ramona, a mãe foi arrebatada pelo peão durante uma festa. “Silvino roubou ela da mangueira, tirando leite. Ela arrumou a mala e fugiu com ele. Foi ele quem a ensinou a atirar. Assim, ela virou uma mulher considerada de alta periculosidade”, relata. Com Silvino, Raída teve três filhos. Após a morte do companheiro, casou-se novamente e deu à luz Ramona. “Minha mãe foi uma mulher de coragem, moldada por tempos duros, que soube transformar luta em sobrevivência”, resume a filha.
Legado – Criada no Pantanal, Ramona cresceu em meio a fazendas, bois e viagens intermináveis. Desde jovem, se impôs nas comitivas, assumindo a posição de ponteira. “Eu cercava o rebanho, cuidava do gado. Sempre fui ponteira. Tive vontade de aprender a tocar e consegui. Com o berrante, você conduz o gado com mais facilidade. Ele não corre, não se espessa. O animal reconhece o som e se orienta”, lembra.
Ser mulher nesse espaço não foi simples. “Meu marido não tocava. Eu mesma aprendi e fui para frente”, conta. Persistência foi sua marca: aos 20 anos já dominava o berrante e conduzia boiadas inteiras, entregando reses de fazenda em fazenda, numa rotina que começava cedo e quase não tinha fim.
Ao narrar suas lembranças, Dona Ramona transporta quem a escuta para outro tempo. “Na minha época era muito difícil, não tinha televisão, não tinha telefone, não tinha nenhuma tecnologia. Hoje não tem peão que não durma com ar condicionado”, compara, entre risos.
Ainda assim, faz questão de frisar que a vida pantaneira moldou sua identidade. “Cada evento que tem, sempre me chamam pra tocar. E assim eu continuei a história do berrante”, afirma. Sua trajetória, que se estende de comitivas a apresentações em hotéis e festas regionais, reafirma o valor dessa tradição como patrimônio cultural e esteve presente também durante o Festival de Inverno de Bonito, com a oficina Mulheres Berranteiras, ao lado de sua filha Fernanda Reverdito, com quem mantém a Casa da Memória Raída, importante espaço que preserva o legado pantaneiro e da região da Serra da Bodoquena.
Durante a oficina, além de ensinar a tocar, elas compartilharam histórias e mostraram ao público os cuidados necessários para conservar o instrumento. Feito de osso, o berrante precisa ser “temperado” com álcool, banha de frango ou pinga para não rachar.
Cada toque carrega um significado próprio: chamar para comer, avisar outras comitivas, abrir porteiras ou reunir o gado. “Para tocar berrante, é preciso persistência”, ressalta Fernanda, lembrando que não se trata apenas de sonoridade, mas de uma forma de comunicação que atravessou gerações.
Protagonismo feminino – A pesquisadora do IPHAN, Alana Margarida, destacou o impacto de valorizar legados como o de Ramona: “Vê-la falando sobre sua experiência nas comitivas, em um papel de protagonista, é interessante porque se trata de uma prática em tese muito masculina, mas aqui é proposta por uma mulher. Pensar que Dona Ramona foi ponteira naquela época é enxergá-la como uma pioneira, quase uma vanguarda. É uma história que precisa ser contada pelas próprias mulheres”.
Bonito, terra de memórias – A história de Dona Ramona se entrelaça com a própria formação de Bonito. Muito antes de se tornar um dos destinos turísticos mais conhecidos do Brasil, a região era marcada por fazendas imensas. Uma delas, a Fazenda Rincão Bonito, com mais de dez mil léguas de mata, foi comprada em 1869 pelo capitão Luiz da Costa Leite Falcão.
Esse território isolado, de belezas naturais singulares, primeiro foi distrito de Miranda, até conquistar autonomia e se tornar município em 1948. É nesse solo de passado épico — de batalhas, boiadas e bandoleiros — que a história de Raída, Silvino Jacques e Ramona Vieira se inscreve como parte da memória coletiva.
Se o passado de sua mãe foi marcado pela luta ao lado de um bandoleiro, o de Ramona é escrito com o som do berrante. Hoje, ela não conduz mais boiadas, mas conduz histórias. Ao lado da filha, administra a Casa da Memória Raída, espaço dedicado a preservar a cultura da região.
“Eu continuei a história do berrante”, diz, em tom sereno, mas firme. No eco de seu instrumento, ressoa não apenas a memória do Pantanal, mas também o lugar das mulheres na construção da identidade pantaneira.
FIB 2025 – Até domingo (24), Bonito será palco de apresentações de música, dança, teatro, literatura, moda, artes visuais e gastronomia. Os quatro palcos principais: Sol, Águas, Futuro e Lua, receberão artistas regionais e nacionais. O festival reafirma ainda valores de acessibilidade e sustentabilidade, com tradução em Libras, gerenciamento de resíduos, plantio de mudas e ações de educação ambiental.
Para mais informações e a programação completa, acesse: https://mscultural.ms.gov.br/festival/festival-de-inverno-de-bonito/
texto: Evelise Couto – Ascom/FIB
fotos: Marithê do Céu – Ascom/FIB